(foto de Pedro Aguilar)
Saí cedo. A casa pesava-me e a rua parecia oferecer paz, pelo menos, àquela hora.
Ruas quase desertas, candeeiros ainda acesos faziam concorrência às montras das lojas enfeitadas com luzinhas natalícias. De vez em quando, das árvores que ladeavam o passeio, caía uma ou outra gota de chuva; eram gotas já cansadas na tentativa de se manterem penduradas num galho. O ar era frio, cortante. Mas despertava-me os sentidos que, entorpecidos, se viam agora confrontados com sensações sôfregas de serem sentidas...era o cheiro da erva molhada, o doce aroma de pão acabadinho de sair do forno de uma pastelaria ali perto...E o céu, esse, espreitava-me lá do alto, por entre os telhados dos prédios da cidade adormecida! Parecia-me ter a cidade só para mim! E súbito, larguei a correr pelo passeio, depois pela relva do jardim, como criança solta em rebelde liberdade, sem medos, sem “vergonhas”, sem me importar com o facto de “parecer mal”...corri, feliz! Quando parei toda eu me ria. Arfando, ergui os braços como maratonista que corta a meta e tem certa a vitória. Nuvens de vapor se formavam enquanto eu respirava, e eu já não sentia frio. E ri mais ainda quando reparei que, comigo, tinham corrido, quatro cães vadios...quase meus rivais a cortar a meta. – “ Ai é? Quereis mais? Quereis brincadeira...seus malcomportados. Então vamos a mais uma corridinha, só p’ra tirar teimas!” – E os meus olhos viam já o jardim municipal, tão arranjadinho, tão bem tratado, e cheio de sebes, perfeitos obstáculos de uma pista imaginária , prontos a serem vencidos de um salto só. (Embora saltar me incomodasse um pouco pois fazia-me doer os seios,...sempre assim fora...). Assobiei chamando os cachorros mas...sem saber como, uma enorme mão, vinda de uma manga azul, estacionara no meu antebraço esquerdo. Segui a manga com o olhar e...lá no cimo do pescoço estava uma cara, muito séria, com um boné, ou isso, na cabeça!
- “A senhora sabe que é proibido pisar a relva dos jardins?”
- Bom dia, Sr. Polícia...Guarda?...Agente...Hummm, peço desculpa...foram os cães” – menti. – “andava a espantar os cães que estavam por aqui a rebolar-se e a estragar o relvado e a urinar nos troncos dos arbustos, percebe?”
Olhámo-nos como quem se quer digladiar. Iria ele acreditar? “É Guarda...mas não é necessariamente burro”, pensei. E no entretanto eu admirava a farda, tão azul com botões tão bem polidos...
Os candeeiros já se haviam apagado. Os cães já ladravam longe, aqueles estupores...que nem para sustentar uma mentira serviam, os traidores! Talvez desiludidos comigo que não cumprira o desafio que lhes propusera...já quase não se viam.
- “ Já viu que está encharcada? É melhor ir para casa, mudar de roupa ou vai apanhar uma valente gripe!” (pensei que ele dissera ou vai apanhar 2 dias de cadeia)! Tenha um bom dia, minha senhora.”
Virou costas, rápido e firme, e deixou-me ali, no meio do jardim, estarrecida! Claro que ele não acreditara! Vira-lho nos olhos. Mas também não se irritara, não me estragara o dia ; pelo contrário: pactuara com a mentira e com a minha infantil atitude. E sorrira...ao olhar para trás, já a alguns metros do local...do crime, sorrira para mim de uma forma sensualmente cúmplice. Não sabia o nome dele pois não havia lido com atenção a placa no peito dele.
E ali estava eu...num dia de frio, cheia de calor...e apaixonada, sim deveras apaixonada por um agente da Guarda Nacional Republicana...