Apenas dois dias depois, já Margarida conseguia sentar-se numa cadeira no seu quarto. Pálida e magra mas com um sorriso que preenchia todo o espaço ao redor. Olhá-la era ter o privilégio de poder ver a Vida, ali, naquela mulher-criança.
Toda a casa, ou melhor, todo o palacete parecia agora outro. Os criados já não falavam baixo, as jarras já estavam, de novo, cheias de flores e até o sol, lá fora, aquecia a custo a relva do jardim. Maximiliano estava outro: deixara de parte os convencionalismos e ...pasme-se... um dia até recebeu Henrique Telles. Vinha para ver a senhora e desejar as melhoras. Que tinha andado muito preocupado mas que agora lhe haviam dito que senhora já recebia visitas, se não fosse muito incómodo...
Claro que não era incómodo nenhum e a senhora até ficaria contente por o ver de novo. Quem ouvisse Maximiliano não o reconheceria. Nem um aponta de cinismo, nem de ciúme. E Margarida lá o recebeu na saleta de visitas. Trazia um vestido verde-escuro, de manga comprida, com subtis bordados no decote e nos punhos fazendo realçar a alvura das mãos. Os cabelos negros, levemente ondulados, caíam soltos pelas costas e ombros e davam-lhe um ar angélico, transcendente. A conversa foi trivial e Henrique não demorou. Quando ficaram a sós foi Margarida quem, muito séria, pediu a Maximiliano para se sentar. Era importante o que tinha de ser dito e feito. Mas Maximiliano, sorria quando pegou na cadeira e se sentou à sua frente. Era o sorriso de alguém a quem, literalmente, é dada uma segunda oportunidade de vida. Quis pegar-lhe nas mãos mas ela recusou e então o sorriso dele começou a apagar-se
- “Margarida, há algo que eu quero dizer-vos primeiro, algo que eu já devia ter dito há muito”...
- “Perdoai. Mas deixai-me falar”. – Pediu ela. E continuou: “É chegado o tempo de eu partir, de me ir embora desta casa. Não vou por ressentimento, nem com mágoa, Maximiliano, tente compreender isso. Vou, porque é chegado o tempo. O nosso trato era por um máximo de um ano de um matrimónio só no papel, permitindo-lhe, assim, herdar toda a fortuna de seus antepassados. Era a exigência do testamento. Casei e aceitei os termos desse contrato. Agora quero ir-me embora, levo o que combinámos e partirei. A minha estada nesta casa pode provocar mais malefícios do que outra coisa.
Aprendi muito, fui feliz aqui e tenho de lhe agradecer o facto de ter sido sempre cumpridor da sua palavra, Maximiliano. Mas agora...impõe-se que eu vá!”
Max estava petrificado, lívido...os seus olhos pareciam os de um garoto assustado e quando quis falar...não soube o que dizer. Levantou-se! Da janela podia ver os canteiros do jardim e, lá mais ao longe as árvores. O silêncio pesava. Voltou para perto dela, olhou-a nos olhos, pegou-lhe em ambas as mãos...
- “ Margarida...e se eu lhe disser, se eu lhe jurar por tudo quanto há de mais sagrado que a amo, sim...olhai para mim, olhai e vereis que eu não vos minto, como nunca menti, vós sabeis... eu vos amo, Margarida. Há muito que vos amo mas sempre quis esconder isso de mim próprio. Achava que era fraqueza de homem solitário e que seria coisa passageira. Mas quando quase vos perdi tive consciência da imensidão deste amor, este amor que tenho por vós e que não cabe em palavras, porque enorme demais é para ser apenas dito, pronunciado...este amor que vos tenho quer-se vivido, Margarida e eu preciso de ti, querida para poder viver. Olha para mim, meu amor. Porque choras Margarida? O meu amor é, para ti, uma afronta? Então porquê essas lágrimas? É por não me amares, não é? Eu sei. És mais nova que eu, és linda, terás sempre alguém que te ame, que te queira, eu sei. Provavelmente o teu coração bate já por outro alguém, é isso?” Mas podes dizer-mo. Não te recrimino, tens todo o direito de amar alguém...mas não chores assim, por favor.”
- “Oh, Maximiliano, se soubesse, se soubesse o quanto amo...”
- “ Eu sei que magoa, o amar intensamente, não é?” E dos seus olhos correu então uma lágrima. Considerava-a perdida, perdida para si. Via-a já nos braços de um outro qualquer mas atreveu-se ainda a dizer:
- “Margarida, mas se o meu amor for maior, mais forte...que o desse outro homem por quem tu...”
- “Não, não entendeis nada! Eu amo, sim, mas amo-vos a vós. Amo-te a ti, meu esposo, amo-te a ti Maximiliano. Ou porque achas que durante quase um ano te acompanhei para todo o lado, me sujeitei a ser ensinada a ter “maneiras de senhora”, como tu dizias, senão por amor ao homem por quem me apaixonei assim que o vi? Porque achas que aceitei desempenhar esta farsa? Pelo valor material que seria a minha recompensa no final do nosso trato? Oh, Maximiliano, senhor, por muito barata me tomais...fi-lo para poder estar perto de vós, de ti...porque te amo...”
Não preciso entrar em pormenores. O caro leitor certamente imagina o que se seguiu. Maximiliano arrebatou-a para si, procurou-lhe sofregamente a boca e num beijo, daqueles beijos que fazem parar o tempo, que fazem o cosmos perecer um pontinho insignificante...assim estiveram. Ambos choravam de felicidade. Ele sentia o corpo dela junto ao seu, sentia-lhe os seios colados ao seu peito ofegante e a desejou com uma intensidade que parecia levá-lo à loucura...Os dois eram, finalmente, um só!
- “ Não, não Maximiliano....por favor, não!”
Maximiliano quase endoidecia. Subitamente ela o afastara de si, quase com repulsa...ele nada entendia, não podia entender...
- “ Margarida, mas...”
- “ Precisamente porque foi preciso eu adoecer gravemente para tu achares que eu te era importante. Foi o medo de me perderes, é o medo de me perderes que tu sentes, não é amor, Maximiliano. Porque no dia antes de eu partir, antes de eu adoecer tu sabias que eu ia embora e nada fizeste para me deter. Só quando o espectro da morte...
–“ Porque eu nesse dia estava cego de ciúmes, ou não te recordas? Eu tenho ciúmes, eu tive ciúmes...e o meu orgulho não me deixava correr atrás de ti naquele dia. Mas certamente correia atrás de ti no dia seguinte...
- “ Não, não irias atrás de mim. Só quando pensaste que eu te iria morrer nos braços é que tiveste pena de mim...e achaste que me devias alguma coisa. Achaste que me devias compensar amando-me. Mas na realidade, Maximiliano, tu não me amas. Queres-me ao teu lado, como até agora, para teres a tua consciência tranquila. Pois podes ficar de consciência tranquila porque não adoeci por tua causa, nem por causa de me teres desejado fora desta casa.”
- “ Como podes, Margarida, saber se o que eu sinto é amor ou não? Como te atreves a julgar os meus sentimentos? Como explicas aquele beijo de há pouco?”
Súbito, a porta da saleta abriu-se, Marie entrou e fechou a porta atrás de si. Vinha com os olhos banhados em lágrimas.
- “ Perdoai, ouve-se tudo lá fora e eu não pude deixar de intervir uma vez que a culpada desta discussão sou eu. Apenas e somente eu.”
-“ Marie, não!” – Implorou Margarida.
- “ Minha senhora, perdoe mas eu tenho de falar. Deixai que me sente...é que estas pernas já querem dar de si...!
- “Não entendo, Marie! Que tens tu a ver com tudo isto?” Perguntou Maximiliano.
Margarida foi até à janela. Baixinho chorava. E Marie começou a contar como desde sempre cuidara do seu menino, como se preocupava com as companhias femininas que ele escolhia. Nunca dissera nada mas lamentava que o seu menino só trouxesse para casa mulheres fúteis e interesseiras. Sem que ninguém se apercebesse afeiçoara-se a Margarida por a saber moça simples, honesta e porque compreendeu bem cedo o quanto Margarida amava o seu menino. Por isso, naquele dia em que Margarida, com a criada de quarto, fazia as malas, Marie preparou um chá de ervas daninhas que quase matou Margarida. Administrado em pequenas doses o chá poria Margarida doente, febril...mas um ligeiro engano, um pouco mais e seu efeito seria letal. E é por isso, caros leitores, que não revelo aqui a composição de tal chá! Seria muito perigoso dar a conhecer uma mistura de ervas que, como última consequência, provoca a morte. Perdoar-me-ão, mas o segredo fica entre mim e as personagens. Sim, personagens! É que Margarida, mulher do campo, conhecia bem o efeito de tal chá. Mas estava doente demais para se defender. Porém quando Marie conseguiu que Maximiliano lhe confessasse o seu amor por Margarida, não mais lhe deu chá. E Margarida melhorou. E depois não descansou até descobrir quem lhe dava o chá e porquê!
- “ Marie, tu foste a responsável pela doença de Margarida?”
- “ Sim, Maximiliano, foi ela...mas sabes por que razão o fez? Para te fazer pensar que me perdias. Para te levar a crer que me amavas...e conseguiu. Mas, como disse há pouco, isso não é amor: é medo de me não teres por perto, medo de me perderes, Maximiliano.
- “Seja, Margarida...seja medo de te perder. E depois? O amor não passa também pelo medo, pelo pavor de se perder a pessoa que se ama?
- “Perdoai, mas eu ainda não acabei. Sim, dei o chá, cuidadosamente à senhora, tremendo para que não me enganasse na mistura. E soube o que agora os dois sabeis: que vos amais. Mas continuais, perdoai que esta velha governanta o diga, obstinados e orgulhosos. O amor é uma coisa tão simples...sente-se, vive-se, partilha-se! E vós ides deixar que esse amor se perca, sereis dois seres amargos, solitários e sempre revoltados com a vida...olhai que eu sei. Agora permiti que me retire. Fiz mal...espero o castigo que entenderdes aplicar-me. Mas fiz o que um dia me fizeram a mim para eu perceber o quanto amava um homem. Soube que o amava mas não quis, por capricho, aceitar o amor dele. Fiquei só, terrivelmente só. Apenas pude agarrar-me à vida por saber que havia uma criança, sem mãe, a quem eu queria como a um filho – o menino Maximiliano.”
E saiu, fechou a porta da saleta...deixou atrás de si aqueles dois, marido e mulher, que nunca o haviam sido. Amavam-se e sabiam disso. Como poderiam ignorar esse amor?
Lá fora estava escuro, já! A saleta estava apenas iluminada por um humilde candeeiro. Os dois procuravam o olhar um do outro: o olhar não mentia, como não mentiam os beijos que trocaram, as palavras que segredaram e as carícias tímidas com que acariciaram os corpos um do outro...sim, os corpos daqueles dois que agora...eram, de facto, marido e mulher.
(FIM)